O mundo alucinante dos controladores aéreos
São poucos, ganham bem e vivem sob pressão. Ser controlador de tráfego aéreo é uma profissão exigente, num mundo que gira cada vez mais ao ritmo dos aviões. Foi preciso um vulcão para que a opinião pública tomasse súbita consciência da dimensão do trabalho dos homens e mulheres que mandam no céu.
Quando era
miúda, Filipa corria para a janela do seu quarto, na Avenida de Roma, em
Lisboa, sempre que ouvia um avião a fazer-se à pista do aeroporto.
"Largava tudo e ia a correr, nem percebia bem porquê", recorda. Hoje,
são os aviões que vêm ter com ela: Filipa é controladora de tráfego aéreo e
trabalha na torre da Portela. Ela é uma das cerca de 400 pessoas que gerem o
movimento dos aviões nos céus de Portugal. É uma classe bem paga e com um
horário de trabalho simpático. Mas alguém se sente capaz de fazer o que eles
fazem?
O espaço
aéreo português é enorme. Está dividido em duas grandes áreas, cada uma a cargo
de um centro de controlo de tráfego aéreo. O de Lisboa gere o tráfego sobre o
continente e área marítima adjacente, bem como do arquipélago da Madeira. O de
Santa Maria, nos Açores, encarrega-se de uma vasta área do Atlântico Norte.
Feitas as contas, são muitas centenas de aviões por dia - durante o mês de Abril,
contaram-se 34.580 (média de mais de mil por dia) em Lisboa, e Santa Maria
"guiou" outros 10.317. Ou seja, muitos mais do que aqueles que,
efectivamente, se dirigem aos aeroportos portugueses.
Os dados são
da NAV Portugal, a empresa que tem como missão prioritária a prestação de
Serviços de Tráfego Aéreo nas Regiões de Informação de Voo (RIV) sob a
responsabilidade portuguesa - Lisboa e Santa Maria. E explicam-se pela situação
geográfica do nosso espaço aéreo. A área atlântica é sobrevoada por uma percentagem
relevante dos aviões que fazem a ligação entre a Europa e as Américas, enquanto
o espaço continental e madeirense recebe o grosso das ligações entre a Europa e
as Canárias, um destino turístico maciço para os mercados europeus.
Foi preciso
um vulcão para que a opinião pública, e não só em Portugal, tomasse súbita
consciência da dimensão e importância que o tráfego aéreo assume para as
sociedades modernas. A paralisação forçada pelas cinzas em suspensão do
Eyjafjallajokull, na Islândia, lançou o caos na Europa. Milhões de pessoas
ficaram em terra, sem alternativa para viajar. As pistas transformaram-se em
parques de estacionamento de aeronaves - e isto é um grande problema, porque o
tráfego aéreo mundial atingiu tais proporções que só consegue funcionar em
rotatividade. Há mais aviões do que aqueles que cabem nos aeroportos. Se
pararem todos ao mesmo tempo, não há onde arrumá-los...
Eles
resolvem equações
E assim
chegamos ao mundo alucinante das pessoas cuja função é manter este
impressionante enxame de aeronaves no ar e dentro dos parâmetros de segurança.
Os aviões têm de respeitar rotas, distâncias mínimas em voo, prioridades na
aterragem e descolagem. Tudo isto num universo tridimensional e em constante
movimento.
"O
nosso trabalho é a resolução permanente de uma equação: num espaço finito,
colocar lá dentro o maior número de aviões possível em condições de
segurança." Falou um matemático. Pedro Barata, 40 anos, controlador de
tráfego aéreo em Lisboa, licenciou-se em Matemática Aplicada antes de fazer o
curso de acesso à sua profissão. Durante algum tempo, pensou-se que esta seria
uma área profissional reservada a alunos de ciências, mas a realidade aí está
para desmentir este preconceito.
Filipa
Figueiredo, 32 anos, a menina que via passar aviões na Avenida de Roma,
licenciou-se em Comunicação Social. Carlos Amorim, 25 anos, aluno do curso de
controladores de tráfego aéreo que decorre actualmente na NAV, é biólogo; a sua
colega Ana Sá, 24 anos, tem um "canudo" de Reabilitação Psicomotora.
As condições de acesso à profissão (porque quem termina o curso tem, desde
logo, garantia de emprego, uma vez que a NAV Portugal abre cursos na exacta
medida das suas necessidades de pessoal) são um grau universitário com os três
primeiros anos completos (bacharelato ou licenciatura), 25 anos de idade
limite, com referência ao final do ano em que se candidata, e domínio das
línguas portuguesa e inglesa.
É claro que,
nos dias que correm, uma formação que garante emprego, ainda por cima bem
remunerado, é um íman irresistível: sempre que abre um novo concurso na NAV
Portugal (e têm sido dois por ano nos tempos mais recentes), amontoam-se
centenas de candidatos. Todos são sujeitos a testes físicos - problemas de
audição, visão ou dicção são complicados nesta profissão - e psicotécnicos.
Estes são determinantes. "Procuramos as características fundamentais para
o exercício da profissão: raciocínio lógico, visão espacial, capacidade de
organização e planeamento, capacidade para trabalhar sob stress, saber
trabalhar em equipa", enuncia José Matos, controlador de tráfego aéreo e
adjunto da direcção de operações da região de Lisboa.
Migrantes à
força
Nem todos
vêm para aqui por vocação. Filipa tinha este sonho de infância e não é difícil
explicar porquê: a mãe era controladora de tráfego aéreo, o pai, Gonçalo,
comissário de bordo. O irmão, Francisco, já agora, acabou por se tornar piloto
da TAP e, por estes dias, não é raro que da torre da Portela lhe chegue um
toque mais pessoal nas normalmente secas e codificadas mensagens entre o
controlo aéreo e as aeronaves. Do outro lado da linha está a irmã...
"Lembro-me de ir ter com a minha mãe à torre, de ver os aviões... Ainda
trabalhei três anos em publicidade, como copywriter. Tentei uma vez entrar no
curso de controladores aéreos, não deu, insisti e à segunda consegui."
Carlos e
Ana, que em breve veremos no simulador que replica o trabalho na torre de
controlo do aeroporto de Lisboa, contam uma história diferente. Para eles, esta
foi uma oportunidade num mundo laboral que ignora os recém-licenciados. Ana
achou que esta ocupação vinha ao encontro de coisas que tinha trabalhado ao
longo da sua vida, "responsabilidade, atenção, capacidade para gerir
multitarefas..."
Já Carlos
responde à pergunta "Porquê controlador de tráfego aéreo?" com outra
questão: "E por que não?" Tal como Ana, também ele é do Porto, também
ele um completo estranho a este mundo da aviação. "Surgiu a oportunidade,
candidatei-me e fui passando testes. A verdade é que primeiro estranha-se e
depois entranha-se", confessa, usando a fórmula publicitária criada por
Fernando Pessoa para a Coca-Cola. Agora, já a meio dos 14 meses de formação
inicial, este biólogo com os olhos postos no céu não tem dúvidas: "Isto é
fascinante!"
O curso não
é remunerado e o vínculo à empresa só é efectivado no final da formação, que
envolve, primeiro, uma componente teórica, depois o trabalho em simulador e,
finalmente, um período de trabalho acompanhado num determinado órgão de
controlo aéreo (torre, radar). São perto de dois anos a investir numa carreira.
Mas, para quem segue em frente (e são a maioria, já que, como salienta José
Benvindo, coordenador do actual curso, a "selecção rigorosa à
partida" limita o número de chumbos), a aposta vale a sempre a pena.
"Teria de ponderar mais se soubesse que ia passar 14 meses em formação e
depois não teria garantia de emprego...", assume Ana Sá.
Espera-os
uma carreira bem remunerada, com um horário apetecível, regalias acima da média
e idade de reforma, em funções operacionais, aos 57 anos. Os controladores de
tráfego aéreo trabalham três dias e folgam dois. Nesses três dias, cumprem,
sequencialmente, os turnos da manhã (8h/14h), tarde (14h/22h) e noite (22h/8h),
o que os obriga a uma rotatividade intensa e exige alguma capacidade de
adaptação.
Paulo
Encarnação, presidente da Associação Portuguesa de Controladores de Tráfego
Aéreo (APCTA), também ele chegado à profissão "sem uma motivação especial
que não a curiosidade", confessa o seu fascínio por um ofício que lhe dá
"prazer". Mas ressalva algumas regras para enfrentar as exigências de
uma actividade que pode ser altamente stressante e exige empenhamento total.
"É muito importante saber descansar e, para muitos, grupo em que me
incluo, há um conjunto de actividades lúdicas, nomeadamente a prática desportiva,
que nos permitem manter os níveis de stress mais baixos."
Os
sacrifícios
E como é que
a família entra nesta equação? Quando se é mais novo, até se pode achar que os
horários disfuncionais são parte do encanto da profissão, como diz Filipa (ela
aponta ainda outros aliciantes: a remuneração, a adrenalina e... o facto de
poder vestir informalmente). Mas como conjugar as rotinas familiares com uma
profissão que foge às rotinas? "A família precisa de se adaptar... É
complicado ao princípio, mas depois encontra-se um ritmo. Afinal, nós temos
tempos de descanso exactamente para limitar os níveis de ansiedade e temos de
os aproveitar. Estar com a família faz parte desse processo de
"esquecer" o trabalho", explica Pedro Barata, que também
frequenta um ginásio e gosta, essencialmente, de estar com pessoas nas suas
pausas do trabalho. Os sacrifícios na vida pessoal não passam apenas por faltar
à festa do amigo, porque não convém fazer noitadas ou beber álcool na véspera
de ir trabalhar; ou não ir ao almoço de família, porque um domingo é um dia
normal de trabalho para um controlador de tráfego aéreo. Passam também por
enfrentar o cenário mais ou menos inevitável de enfrentar algum tempo longe de
casa.
"O
fluxo normal consiste na colocação dos recém-formados nas ilhas, nomeadamente
no controlo de Santa Maria, que é onde abrem vagas. E estas vagas são as
deixadas abertas por controladores com mais anos de serviço que regressam ao
continente", explica José Matos. Pedro Barata esteve quatro anos e meio em
Santa Maria, Filipa Figueiredo quatro, Paulo Encarnação nove. Mais tarde ou
mais cedo, cumprido este aparente ritual de iniciação, aparece a oportunidade
de regressar a "casa".
Sacrifícios
pessoais, quem os não faz em nome de uma carreira? Mas num ponto a profissão de
controlador aéreo estabelece uma fronteira clara: são poucas as actividades
humanas em que o grau de responsabilidade seja maior. Isso, um nível de
formação apurado (e dispendioso) e o reduzido número de pessoas habilitadas a
cumprir a tarefa (em contraponto com um tráfego aéreo cada vez mais exigente)
explicam que esta seja uma classe profissional bem paga e com regalias acima do
comum.
O nível
inicial de rendimentos de um controlador de tráfego aéreo está estipulado nos
2800 euros; o topo de carreira, 14 degraus acima, aproxima-se dos 4000. Sobe-se
de categoria automaticamente ao fim de alguns anos de serviço (a princípio de
dois em dois, mais para acima o período alarga-se). Mas a estas verbas há que
juntar uma remuneração operacional, que varia conforme o órgão de controlo
(torre, radar) e o local em que se trabalha (Lisboa "vale" mais do
que um pequeno aeroporto nas ilhas, por exemplo). Há ainda que contar com
diuturnidades, feriados e horas extraordinárias. Contas feitas por alto, são
sempre uns milhares de euros por mês e o topo de carreira pode aproximar-se dos
15.000.
São números
que impressionam, ainda por cima associados a mais de 30 dias de férias por
ano, folgas a cada três dias, meia hora de repouso a cada duas horas de serviço
nos postos mais exigentes. E etc... e etc... Num país habituado a invejar quem
ganha bem, não surpreende que não haja propriamente uma grande abertura para
falar dos ordenados dos controladores de tráfego aéreo. Mas, se estes dados
podem aguçar o interesse de jovens à procura de emprego, pouco mais fazem pelo
cidadão comum do que deixá-los a pensar que erraram a carreira. Afinal, cobiçar
este nível de vida é o mesmo que ter inveja do ordenado de um cirurgião. E quem
é que se sente habilitado a fazer o trabalho dele?
Sim, há
sustos
Há coisas
que não há dinheiro que pague. "Houve uma situação em que estive
envolvido, as coisas não correram bem e ocorreu uma infracção das regras de
segurança. O inquérito posterior provou que foi o piloto quem cometeu o erro,
mas nessa altura ficamos completamente acelerados e abalados", recorda
Pedro Barata. "Foi um grande susto, que pode deixar marcas durante dias,
semanas."
Quando
ocorre uma situação destas, o controlador é imediatamente retirado da sua
posição de trabalho, "para sua segurança e das pessoas a bordo das
aeronaves". Segue-se um inquérito pormenorizado, tendo em vista o
apuramento das causas da falha no sistema. A regra na aviação civil é que cada
acidente ou incidente seja aproveitado para aprender e evitar a repetição de
erros no futuro. Mas, para um controlador de tráfego aéreo, a recuperação da
autoconfiança depois do abalo é sempre um processo muito pessoal. "E nós
precisamos de ter autoconfiança, uma vez que estamos a resolver problemas em
tempo real."
Paulo
Encarnação nunca enfrentou uma situação "verdadeiramente complicada",
mas classifica como comuns casos de urgência médica (um passageiro com um
ataque cardíaco, por exemplo) ou emergência mecânica (problemas numa aeronave -
na esmagadora maioria dos casos não envolvem risco imediato, mas requerem a
abertura de um corredor prioritário para aterragem na pista mais próxima).
Filipa
Figueiredo recorda um episódio passado em Santa Maria, quando um pequeno avião
manteve o rádio em silêncio durante toda a travessia do espaço aéreo, o que
impossibilitava o cálculo da sua posição. No mar, não há radares e por isso a
posição é calculada em função das últimas coordenadas reportadas, da velocidade
da aeronave e das condições meteorológicas. "De repente, apareceu para
aterrar em Santa Maria, já pensávamos que tinha caído..."
Contra estas
pequenas omissões humanas não há, por vezes, tecnologia que baste. O centro de
controlo de Santa Maria está ao nível do que de melhor existe no mundo e a NAV
Portugal orgulha-se de ser não só uma empresa bem equipada, como também
inovadora. " O sistema de Gestão de Tráfego Aéreo de Lisboa foi
desenvolvido aqui, na área da empresa dedicada precisamente ao desenvolvimento
de sistemas e tecnologias de informação. Em termos de procedimentos, somos
também pioneiros na Europa: há um ano que pusemos em prática na Região de
Informação de Voo de Lisboa o Projecto Free Route Airspace Lisboa FIR, que
consiste em permitir que os operadores escolham o ponto de entrada e de saída
no nosso espaço aéreo, garantindo-lhes desta forma rotas mais directas e
consequentemente poupanças em tempo de voo, consumo de combustível e redução de
emissões de CO2", informa José Matos.
Apesar deste
bom desempenho, e de níveis de produtividade que colocam a empresa portuguesa
entre as sete ou oito melhores da Europa, a verdade é que o cenário do céu
único europeu coloca questões de sobrevivência à NAV Portugal. Quem o enfatiza
é Paulo Encarnação, que lembra a intenção europeia de criar "cinco ou seis
blocos operacionais" - um deles seria o ibérico. "O nosso receio é
que, sendo a NAV uma empresa de um país pequeno, corre o risco de ser absorvida
pela sua congénere espanhola, a AENA, que está pior classificada mas é muito
maior." A questão está no ar desde 1999 e, por agora, resta à NAV Portugal
continuar a apostar na excelência do seu serviço.
Edifício
auto-suficiente
E é isso que
podemos ver em Lisboa, no edifício 118 do aeroporto. Um centro de controlo de
tráfego aéreo é uma infra-estrutura à prova de falha. Tem de ser. Todos os
sistemas são redundantes, alguns chegam a ter dois apoios para eventual
substituição. O edifício está equipado com geradores que lhe permitem funcionar
um mês sem alimentação eléctrica do exterior. É, ao contrário do que sucede na
torre de controlo de um aeroporto, um edifício virado para o seu interior. Lá
em baixo, o coração do sistema: a sala de controlo.
O pé-direito
alto é o equivalente a três andares convencionais, as luzes apontam para cima e
fornecem iluminação indirecta, não há janelas para o exterior ao nível visual
de quem trabalha nos 26 postos colocados em semicírculo, cada um com telefones,
monitores e equipamentos de comunicação. Nem todos são usados em simultâneo e,
no meio, uma ilha de monitores e cadeiras marca as posições de supervisão. Ao
lado, há uma zona de serviços de apoio.
Há três
posições reservadas ao controlo de aproximação (o passo do meio entre o controlo
em rota e a torre do aeroporto - neste caso, também as torres de aeródromos
como os de Cascais, Sintra ou Alverca), nos outros que estão em funções há
sempre duas pessoas por cada sector: um controlador executivo e um controlador
de apoio. Durante o dia, o espaço aéreo a cargo de Lisboa divide-se em sete
sectores; à noite, com menos movimento, podem ser apenas dois. Nas suas bases,
a Força Aérea tem pessoal específico para estas funções, mas nesta sala também
há um posto, a um canto, reservado aos militares.
Aqui, os
aviões são ícones navegando num mar de coordenadas, o silêncio só é quebrado
pelas comunicações cifradas (sempre em inglês) entre o controlador e os
pilotos. A maior parte das aeronaves referenciadas nestes monitores nem sequer
vão aterrar em Portugal. As que vão pousar, nomeadamente em Lisboa, depressa
deixam de ser um sinal no computador para passarem a ser uma luz à distância.
Na torre de controlo da Portela, como em todas as outras, afinal, é de
navegação à vista que (também) se fala.
Assim que
chegamos, a referência mental que se impõe é a de que estamos num farol. A
subida ao andar superior por uma escadaria de madeira bastante íngreme -
"Cuidado com a cabeça!" - só reforça essa impressão inicial e,
chegados lá acima, a visibilidade a 360 graus confirma tudo. Estamos num farol,
efectivamente, um ponto de referência para toda a manobra no aeroporto.
Há aviões
que querem partir e outros que se aproximam para a aterragem. Os que chegam
precisam de saber onde vão estacionar, os que se fazem ao caminho têm de ser
colocados por ordem para a descolagem. Como em tudo na vida, a realidade
conspira constantemente para dificultar a vida a quem tem de gerir todo este
movimento. "Quer fotografar com um avião a aterrar? Bom, vamos ter de esperar
oito minutos..." É normal, os períodos de maior movimento são o início da
manhã e o final da tarde - e nessas alturas nem se pode andar a fazer
reportagem na torre...
Espera-se
então alguns minutos e, subitamente, o sossego foi-se. À chegada, as coisas
estavam tão calmas que um observador mais desatento nem perceberia o que faziam
aquelas pessoas de auscultadores nos ouvidos e olhar atento aos monitores à sua
frente, pequenas placas de plástico ao alcance da mão para aí colocarem as
tiras de papel que saem da impressora mesmo ao lado - são os códigos dos aviões
que se movimentam no aeroporto.
De repente,
a tal aterragem por que se esperou vários minutos é seguida de mais três ou
quatro, enquanto outros tantos aviões se movimentam na placa rumo às posições
de descolagem. É preciso intercalar as aterragens com as descolagens, calcular
os tempos de aproximação com os de manobra na pista, apontar portas de
desembarque a quem chega e passar quem parte para o controlo aéreo. Parece uma
confusão, mas para quem está treinado tudo isto é rotina, tudo isto é normal.
Ou talvez nem por isso... "O que é feito da British?", interroga-se
Filipa, que neste final de manhã está de serviço na torre e nota a falta de
aviões da companhia britânica. "Estão em greve", respondem-lhe do lado.
Vencer os
medos
Um
controlador de tráfego aéreo tem formação permanente. Porque as situações de
maior tensão e complexidade não são comuns, de vez em quando eles são sujeitos
à "tortura" do simulador, onde supervisores os sujeitam aos cenários
mais exigentes. Lembra Filipa Figueiredo: "Uma vez comunicaram-me:
"Há uma bomba na torre." E eu, mesmo sabendo que estava numa
simulação, ainda perguntei: "Isto é a sério?" É que há sempre algum
maluco ao telefone a inventar coisas destas... Mas não, era mesmo a simulação,
e aí temos de tomar as medidas necessárias para enfrentar a situação."
É uma
espécie de regresso às origens. É por aqui, por esta sala com um enorme painel
vídeo a servir de horizonte, que passam os candidatos à formação, quando já
cumpriram a parte teórica do curso e começam a testar verdadeiramente as suas
aptidões para o trabalho de torre. Lá à frente, dois formandos colocam-se na
habitual posição executivo/apoio, ladeados por um instrutor que lhes vai dando
indicações e tomando notas. Pretende-se que a sua intervenção seja cada vez
mais reduzida à medida que os alunos vão ganhando experiência.
Num plano
superior, cá atrás e para lá de um vidro, sentam-se três pessoas: um
supervisor, no meio, vigia todo o exercício e assume os papéis de apoio -
bombeiros, meteorologia, estrutura aeroportuária. Ao seu lado, dois pilotos. Um
comanda aviões que querem descolar, o outro apresenta-se para aterragem. De vez
em quando, o ritmo intensifica-se - "Vai ser apertadinho, este!",
comenta alguém acerca de uma descolagem entre duas aterragens. Mas deu. Só que,
quando calha (leia-se, quando a mente maquiavélica dos instrutores assim o
determina), alguma coisa "corre mal": por exemplo, um avião aborta a
aterragem - diz-se, na gíria aeronáutica, que "borregou" -, o que
obriga a acertar o passo de todas as outras operações em curso.
Progressos
técnicos
Ana assiste
de fora ao que normalmente vive lá dentro. "É giro porque depois, na vida
civil, damos por nós a usar estas expressões. Dizemos Roger quando percebemos; falo
de pista em vez de estrada, de tráfego em vez de trânsito..." Tudo normal.
"É fascinante vê-los crescer, como pessoas e como profissionais. Os alunos
chegam aqui e começam por atender o telefone com um "Alô", ou
"Estou"; depois, ao fim de algum tempo, já dizem
"Transmita"..." É indisfarçável o orgulho na voz de José
Benvindo.
O ambiente é
cordial. Os agora alunos serão, a médio prazo, colegas de profissão. Mas isso
não implica uma avaliação menos rigorosa. "Lido muito bem com o stress na
profissão, mas no curso sentia-me ansiosa, com medo de chumbar. Muitas vezes,
quando as coisas não corriam bem, saía de lá a chorar", recorda Filipa.
Cada um reage à sua maneira. Carlos, por exemplo, garante que a exigência do
curso o motiva a dar o seu melhor "e mais um bocadinho".
Filipa e a
mãe, Maria Adelaide, foram durante alguns anos colegas de profissão. Agora a
segunda, com 58 anos, reformou-se, numa altura em que ser mulher nesta
actividade deixou de ser uma coisa rara. "Quando entrei, em 1973, éramos
no máximo umas oito em 70 ou 80 controladores", recorda. Ao contrário da
filha, não teve qualquer influência familiar na sua decisão de seguir esta
profissão.
Não foi bem
uma decisão... "Estava na faculdade a terminar Bioquímica quando respondi,
eu e umas colegas, a um anúncio para um part-time. Afinal, era o curso de
controladores de tráfego aéreo..." Maria Adelaide viu muita coisa mudar
nas últimas décadas. "Os progressos tecnológicos foram imensos!",
atira, para a filha responder em tom de desafio: "Mas também o movimento
era muito menor!"
Mas há
coisas que se mantêm iguais e que nos levam a um sorriso. Maria Adelaide:
"Quando fui ao centro de controlo pela primeira vez, reparei que o relógio
da parede estava uma hora atrasado. No dia seguinte, a mesma coisa, e pensei:
"Coitados, estão tão atarefados que não têm tempo para acertar
isto..." Só que quem estava enganada era eu; o relógio marcava a hora UTC,
a hora internacional da aviação!"
Só por uma
vez Maria Adelaide fraquejou nas suas funções. "Estava um temporal horrível
e o meu filho ia fazer exame para tirar o brevet. Lembro-me de lhe ter
perguntado se ia jantar a casa, mas depois tive de pedir para ser substituída,
estava muito nervosa."
Desta vez
não era possível cumprir a regra tácita dos controladores, que consiste em não
pensar nos pontos ou luzes que comandam como aeronaves cheias de pessoas.
"Não o fazemos de forma deliberada", explica Pedro Barata. "A
primeira abordagem é resolver aquela equação, colocar os aviões no espaço
disponível dentro dos limites de segurança. Só se alguma coisa falha, é que a
ideia nos salta à mente: há pessoas lá dentro! E isso não é agradável..."
O contacto
directo com a aviação civil parece até ser a melhor forma de superar medos
ocultos. "Antes de ir para o curso, sonhava muito com aviões, mas sempre
desgraças! Quando o meu pai ia voar, fazia uma rezinha", admite Filipa.
Agora não tem medo de voar e não vê razões para tal. Porque, mesmo com milhares
e milhares de aviões no ar todos os dias, os acidentes são muito raros.
Fechados em centros de controlo ou empoleirados em torres de aeroporto, os
controladores lá estão para cumprir o seu papel. Discretos e anónimos, como o
são todos aqueles de que só nos lembramos quando as coisas correm mal. Para
eles, não ser notícia é mesmo a melhor das notícias.
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