FERDINAND PORSCHE: Um homem e o seu sonho

FERDINAND PORSCHE: Um homem e o seu sonho

VW: O carro que o povo amou

PASSAM EXACTAMENTE 60 anos sobre a chegada dos primeiros Carochas aos novos concessionários Volkswagen. Para falar da história daquele que é o mais emblemático modelo da marca alemã, bem como um dos mais populares e mais produzidos de sempre, é preciso também conhecer o seu criador, um dos maiores génios da indústria automóvel: Ferdinand Porsche.Responsável por alguns dos mais importantes avanços da engenharia mecânica, teria de esperar até ao fim dos seus dias para ver sair de fábrica um carro com o seu nome.


EM MARÇO DE 1948, os focos do Salão Internacional de Genebra incidiram sobre um elegante carro de desporto, mas muito poucos augurariam a carreira de sucesso que a marca viria a conhecer. No entanto, o criador daquele carro, construído quase artesanalmente, a partir de peças, muitas delas em segunda mão, do Volkswagen, era o homem a quem a indústria automóvel europeia devia alguns dos mais importantes avanços do sector.
Este automóvel de dois lugares e motor central, com linhas apuradas, tanto deveria servir para transportar um homem de negócios como, com algumas pequenas modificações, ser utilizado na competição.
O primeiro Porsche, mais tarde conhecido como 356, conhecia as luzes da ribalta; para um homem em especial, era o corolário de uma carreira recheada de êxitos.

Obstinado e criativo


FERDINAND PORSCHE nasceu a 3 de Setembro de 1875 no norte da Boémia. A capacidade criadora herdou-a do pai, modesto funileiro conhecido pela perfeição do seu trabalho. Autodidacta assumido,
Ferdinand passou pela escola industrial, mas foi uns diversas empresas mecânicas e eléctricas, onde desde muito novo começou a trabalhar, e nas fortuitas aulas da universidade a que assistia ilegalmente, que foi adquirindo os conhecimentos de engenharia necessários para ser aceite junto dos pequenos construtores de automóveis austríacos, país onde então já vivia. Desde logo, começou por impor soluções técnicas arrojadas, nomeadamente a nível da transmissão. Já na Alemanha, os sucessos alcançados na competição — primeiro com o Mercedes Kompressor, depois com o Auto Union de motor multi-válvulas e uma engenhosa e eficaz suspensão —, deram ao professor Porsche, como passou a ser conhecido, a necessária reputação como projectista.
Em paralelo com o seu trabalho para os grandes construtores alemães, o professor ia criando esboços e ensaiando, sempre que possível, variadas soluções técnicas, acreditando firmemente no grande futuro reservado aos carros de pequenas dimensões.


POR ISSO, quando Hitler lhe pediu, em 1933, a concepção de um carro para o povo, o projecto já estava, afinal, em desenvolvimento. O único óbice era o preço final estabelecido pelo Führer: no máximo 1000 marcos. A sua primeira reacção foi recusar o convite. Não o disse logo, mas não vislumbrava forma de conseguir alcançar um valor tão baixo, mesmo num carro simples, construído em grandes quantidades.
As outras exigências não eram problema: robustez, consumo económico, velocidade razoável, arrefecimento a ar, manutenção fácil e barata. Esses princípios estavam presentes no carro que Porsche já tinha proposto, primeiro à Zundapp e depois à NSU. Aliás, a versão final do desenho do Volkswagen assemelhar-se-ia não apenas a este último modelo, como recorria também a algumas soluções e elementos aí aplicados.
MESMO sem confiar grandemente nas pretensões do ditador alemão, o professor aceitou desenvolver o projecto. Um ano depois, a 3 de Março de 1934, na sessão de abertura da Exposição Internacional de Automóveis e Motocicletas de Berlim, Hitler anunciou, num inflamado discurso político, o desejo do seu Governo de construir um carro acessível. E dele vinha também a ordem para que os diversos fabricantes de automóveis alemães fornecessem o apoio e as peças necessárias para o futuro automóvel, de modo a alcançar-se um preço de custo que não excedesse os 900 marcos…
A Porsche foi dado um período ridiculamente curto de dez meses para construir e desenvolver três protótipos.


A REACÇÃO dos diferentes fabricantes de automóveis foi de total descrença, ainda que por ordem do Führer tivessem de prestar toda a assistência, algo que também desagradava ao professor.
Os protótipos acabaram por demorar muito mais tempo, não só porque Porsche tinha de desenvolver simultaneamente o carro de corridas da Auto Union, como também reinava uma cena indefinição quanto ao motor a utilizar, se de dois, se de quatro cilindros.
Um ano passou e, de novo na abertura do Salão Automóvel de Berlim, Hitler voltou a referir o projecto, designando-o, pela primeira vez o carro como Volkswagen, o «carro do povo».
Contudo, passado mais um ano, no mesmo local, as palavras do ditador sobre o assunto já provocavam o esboçar de vários sorrisos por parte dos donos das fábricas alemãs de automóveis, que começavam a suspirar de alívio…
Símbolo Alemão


SÓ QUE OS PRINCÍPIOS gerais do VoIkswagen já estavam definidos. O motor, pelo custo e pelos consumos, seria arrefecido a água, teria quatro cilindros e cerca de 995 cc. O preço continuava a ser um problema, considerando Porsche que reduções significativas do custo só podiam ser obtidas com métodos mais modernos de produção.
Por isso voou para os Estados Unidos.
Com o que viu no Novo Continente, o professor ficou com a impressão que, de facto, os desejos de Hitler poderiam ser realizados, embora isso obrigasse a vultuosos investimentos em maquinaria e à aplicação de novos métodos de produção.


A 12 DE OUTUBRO DE 1936, foram finalmente entregues, oficialmente, ao Governo alemão, três protótipos prontos a entrarem numa fase de testes. Estes desenrolar-se-ão ao longo de 500 mil quilómetros, referindo o relatório final dos ensaios que «as características gerais da construção do carro provaram preencher o fim em vista. O comportamento geral foi satisfatório. (...) O consumo permaneceu dentro dos limites. (...) Baseado nestas observações, parece aconselhável considerar a continuação do desenvolvimento do carro».
Perante isto, faltava apenas retocar pequenas falhas detectadas ao longo dos testes, aperfeiçoar o desenho final e encontrar formas de produzir o carro a custos controlados. Dois factores abonavam a favor deste último ponto: o veículo estar desenhado de maneira a que certas peças utilizadas noutros modelos pudessem ser aplicadas, e um empenho muito forte de Hitler, que o levou inclusive, a criar entraves à produção de um veículo de características semelhantes que a Opel apresentou no Salão de 1937.
POR ISSO, quando no discurso de inauguração da exposição de 1937, Hitler se referiu novamente ao Volkswagen, dizendo que eram necessários os últimos preparativos para iniciar o seu fabrico, os senhores da indústria privada gelaram.
A ameaça ao seu reinado era séria.
O engenho criativo de um homem e a loucura megalómana de outro poderiam vir a criar sérios embaraços à arrogante indústria automóvel germânica.
Ainda que todos os indícios já estivessem presentes, muito poucos adivinhariam porém, que a Alemanha estava às portas de provocar novo conflito bélico…


OS TRÊS PROTÓTIPOS produzidos, ainda que tendo demorado mais tempo do que inicialmente fora acordado, seguiram, após os primeiros testes, para as instalações da Daimler-Benz. Produzidos mais trinta protótipos, com os aperfeiçoamentos que os ensaios iniciais sugeriram e com acabamentos mais cuidados, nomeadamente a nível da chaparia, seguiu-se uma nova série de testes, alguns em circunstâncias particularmente adversas.
Para proceder à recolha e análise dos dados, Porsche escolheu o filho, Ferdinand como o pai, mais conhecido por «Ferry».
Entretanto, o esforço da recuperação alemã, da I Grande Guerra e da recessão europeia, dava os seus frutos. Restabelecida a confiança do povo, a fábrica do Volkswagen permitiria vir a empregar, na sua capacidade máxima — um milhão de carros por ano —, cerca de trinta mil operários alemães.


A MEGALOMANIA do projecto assustava o professor Porsche.
Mais do que instalações e maquinaria, não via onde a Alemanha teria capacidade para formar tão rapidamente trabalhadores especializados, nomeadamente engenheiros...
Voltou aos EUA para aliciar técnicos alemães imigrados e seus descendentes. A visita, permitiu-lhe voltar a apreciar os métodos e máquinas utilizados pelos americanos, além de lhe proporcionar um dos maiores prazeres da sua vida, segundo confessaria: o encontro com Henry Ford, outro mago da indústria automóvel e que, como Porsche, acreditava na produção em massa de automóveis.
Ford, como os restantes dirigentes da indústria automóvel americana, não acreditava muito no projecto Volkswagen. Para os alemães, contudo, a viagem foi bastante produtiva, tanto na escolha de maquinaria como no aliciamento de quadros.
Wolfsburg foi o local escolhido para a construção da fábrica, por ser central, possuir boas vias de comunicação e dispor de espaço para a construção de uma cidade com 90 mil habitantes e futuras ampliações. Foi decidida a venda directa dos carros para evitar que o lucro da intermediação agravasse o preço final. Quando a primeira pedra foi lançada em 26 de Maio de 1938, já Hitler tinha anexado a Áustria.
Quatro meses depois marchava sobre a Checoslováquia. Ferdinand
Porsche
recebeu uma condecoração nacional, mas, ao contrário da maioria dos seus colegas da ciência, até aí nunca tinha estado comprometido com qualquer projecto bélico ou previra uma utilização militar do Volkswagen.
Em teatro de guerra


INEVITAVELMENTE, isso veio a acontecer. A ordem directa do ditador alemão obrigou Porsche a proceder a algumas alterações no Volkswagen: aumentou-lhe a cilindrada para 1134 cc, reformulou a direcção, reforçou o chassis e a suspensão. A carroçaria, blindada, passou a ser aberta e com quatro portas. Terminava o ano de 1938, quando uma viatura militar foi entregue ao departamento de guerra para ser aprovada. A reacção das altas patentes militares foi de inteiro desagrado, por não possuir tracção total, ser pequena e com motor refrigerado a ar. Hitler insistiu. Alguns modelos foram experimentados no teatro de guerra da Polónia. Um pedido específico do Estado-Maior do Exército Alemão deu o impulso decisivo. Na expectativa do que iria acontecer e de modo a que fosse possível produzir, em simultâneo, a versão civil e a de guerra, Porsche redesenhou partes do Volkswagen, para que este pudesse receber as mesmas especificações do veículo militar.


ROMMEL foi o primeiro oficial do Exército germânico a pedi-lo expressamente, inicialmente para as campanhas no Norte da França, depois para o Norte de África. Considerava-o ideal para suportar não só os maus-tratos infringidos pelos condutores, como para enfrentar as contrariedades do deserto.
Também na frente oriental, no frio gelado das estepes russas, o carro se revelava o mais indicado, porque o motor, refrigerado a ar, não congelava. Quando os alemães se retiraram em debandada do Norte de África, tiveram o cuidado de destruir as viaturas abandonadas. Eles tinham finalmente compreendido o seu valor.


O POUCO que tinha sido construído durante a guerra, foi utilizado para a construção de equipamento militar. Apenas algumas viaturas de estrada foram acabadas e destinadas às chefias militares e a graduados do partido nazi.
A variante militar deu posteriormente lugar a uma versão anfíbia, em 1942. O génio mecânico do professor Porsche acabaria por ser posto ao serviço das vontades dos senhores da guerra. Do seu estirador saíram alguns tanques de assalto.
Com o aproximar dos dias do estertor final de um regime sanguinário, grassava a confusão em Wolfsburg. A fábrica tornou-se um alvo privilegiado dos raids aéreos aliados. O que não foi destruído pela guerra, acabou por ser saqueado por alguns operários-prisioneiros, recrutados à força nos países ocupados, após a fuga dos guardas alemães.
Uma semana tardou até à chegada das tropas americanas ao local. Surpreendidos, depararam com alguns alemães a falarem em inglês com o seu sotaque; eram os engenheiros técnicos que tinham vindo dos Estados Unidos.
No início de 1945, Porsche e a sua equipa retiram-se para o Sul da Áustria. Foi aí que os aliados o encontram e o colocam em prisão domiciliária.


INTERROGADO, o professor predispôs-se a revelar o que conhecia dos segredos alemães. Entretanto, em Wolfsburg, as tropas britânicas tinham substituído as americanas. A necessidade de reparar os seus próprios veículos e de possuir mais para tarefas civis, incentivou a recuperação de alguns sectores menos destruídos da fábrica.
O maior problema eram as precárias condições de vida dos estrangeiros
(sobretudo os da parte oriental da Europa), antes operários à força, agora famílias destroçadas com casa destruída nos seus países de origem. As tropas aliadas compreenderam então a importância da recuperação da fábrica. A oferta de emprego e de um salário era decisiva para conter a desordem civil. A produção do Volkswagen foi gradualmente aumentando, consoante os sectores da fábrica iam sendo recuperados e a matéria-prima permitia. Começaram as exportações de carros para vários países europeus, e até 1949, ano em que a fábrica transitou das mãos das forças de ocupação britânica para o Governo alemão, tinham sido construídos mais de quarenta mil unidades. E só nesse ano, foram construídas mais 46 000 unidades.


EM 1950, já liberto e de novo a viver na Áustria, Ferdinand Porsche foi autorizado a visitar a Alemanha.
Ao transpor a fronteira, acompanhado pelo seu filho, Ferry, não conteve as lágrimas ao contar o número de carros que tinha feito nascer.
Faleceu em Estugarda, a 30 de Janeiro de 1951. A 5 de Agosto de 1955, com pompa e circunstância, saía da linha de montagem a unidade um milhão! Os cerca de 22 milhões de unidades, tornam o Volkswagen o mais produzido de sempre. Para ironia do destino, este carro, nascido durante o maior e mais sangrento conflito que o Mundo conheceu, acabaria por se tornar num dos símbolos da geração hippie e dos seus ideais de paz! (Ler, a esse propósito,  «As ironias do destino» . E foi, definitivamente, um carro para o povo.


As ironias do destino


Há algum tempo que não venho cá, distraído com as férias, a antecipação dos trabalhos que tenho que deixar feitos, perdido com o calor e o sol que chama para a praia e acentua a preguiça. Hoje, por acaso, o dia até nem nasceu prometedor, se calhar a preparar-me a semana que vem e a não deixar-me muitas expectativas...
Enfim...
Entre o que escrevi, conta-se a história do nascimento de um carro que eu gosto muito e, como eu, milhões e milhões de pessoas em todo o Mundo. Um carro idolatrado, amado, desejado, intemporal e genial e, como todos os génios (mesmo sendo carro) com as suas manias...
Falo do VW, o beetle original, o carocha, tão versátil que a partir dele já se construiu todo o tipo de viaturas, sejam eles buggys, jipes, anfíbio, furgões, desportivos, limusinas, eu sei lá... Um daqueles carros em que tanto fica bem o snobe de casaca, como o veraneante de fato de banho... Conhecem outro carro assim?????
A ironia é que este carro foi concebido porque um ditador doente e megalómano (como todos, de resto...) quiseram fazer dele a obra e símbolo de um regime. E encontrou outro génio, este mais pacífico felizmente, que respirava mecânica, um genuíno autodidacta que aprendia fazendo e inventado, deixando um legado que ainda hoje perdura. Esse homem foi Ferdinand Porsche, que como Henry Ford acreditava na produção de carros em massa e, já na altura, na democratização do uso do automóvel.
Mas adiante…
Hitler pediu a Porsche um carro barato e fiável, fácil de construir e de manter. O objectivo era demonstrar a capacidade de uma Alemanha em recuperação económica pós primeira guerra, gerar empregos e proporcionar meio de transporte aos alemães menos abonados, e, naturalmente, fazer era fazer dele objecto de propaganda do regime.
Para Porsche não foi difícil obedecer aos requisitos técnicos exigidos — afinal até já tinha concebido antes protótipos que correspondiam ao desejado —, mais difícil foi conseguir que o modelo fosse vendido pelos tais 1000 marcos que o ditador impunha.
E não tarda estou a contar a história do carro…

Só para dizer que este foi um carro nascido em plena preparação para o maior conflito bélico que o mundo assistiu. Ironicamente nenhum alemão a que se destinava, beneficiou dele durante o regime nazi. As poucas versões civis foram destinadas a membros do partido ou oficiais do exército, a paradas do governo. A produção, durante os anos do conflito, foi orientada para viaturas militares, os pequenos anfíbios e jipes que tantas dores de cabeça provocaram às tropas aliadas que combatiam Rommel no norte de África.
O VW nasceu durante a guerra, serviu na guerra e para a guerra e, ironia do destino, acabaria por se transformar num dos símbolos da geração pacifista dos anos 60/70, os hippies. Como Hitler um dia desejou, serviu para o povo, o alemão (ajudando decisivamente o País a recuperar economicamente da 2.ª Grande Guerra e transformar-se na potência que é hoje) e para o povo de todo o mundo, os menos abonados que o compravam em segunda, terceira e não sei quantas mãos, como primeiro carro, como carro de família, como viatura de trabalho, para as corridas, para o lazer. O VW esteve, e continua a estar em todas.
Transformou-se num carro de culto, amado, odiado, desejado, invejado, surpreendente nas suas múltiplas versatilidades. Está presente em todo o mundo, fez todas as rotas, mesmo as mais difíceis e exigentes do ponto de vista mecânico e, durante muitos anos, foi a sua base mecânica que serviu à VW e a muitos outros carroçadores, para construir novos modelos.
Este é o meu modesto contributo ao carro mais construído de sempre. O carro que um dia ainda hei-de ter!

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